
PARTE IV
Verdade
Se você se sente impotente e confuso diante da
situação global, está no caminho certo.
Processos globais são complicados demais
para que uma única pessoa os compreenda.
Como então saber a verdade sobre o mundo, e
não ser vítima de propaganda e
desinformação?
15. Ignorância
Você sabe menos do que pensa que sabe
Os capítulos precedentes examinaram alguns dos problemas e
desenvolvimentos mais importantes da era atual, desde o exagero midiático
em torno da ameaça de terrorismo até a subapreciada ameaça de disrupção
tecnológica. Se você ficou com a sensação perturbadora de que é demais, e
que você não é capaz de processar tudo isso, você está absolutamente certo.
Ninguém é.
Nos séculos recentes, o pensamento liberal depositou uma confiança
imensa no indivíduo racional. Ele descrevia indivíduos humanos como
agentes racionais independentes, e fez dessas criaturas míticas a base da
sociedade moderna. A democracia fundamenta-se na ideia de que o eleitor
sabe o que é melhor, o livre mercado capitalista acredita que o cliente tem
sempre razão, e a educação liberal ensina os estudantes a pensarem por si
mesmos.
No entanto, é um erro depositar tanta confiança no indivíduo racional.
Pensadores pós-coloniais e feministas destacaram que esse “indivíduo
racional” pode muito bem ser uma fantasia chauvinista ocidental,
glorificando a autonomia e o poder de homens brancos de classe alta. Como
observado anteriormente, economistas comportamentais e psicólogos
evolucionistas demonstraram que a maioria das decisões humanas é baseada
em reações emocionais e atalhos heurísticos e não em análise racional, e que,
enquanto nossas emoções e nossa heurística talvez fossem adequadas para
lidar com a vida na Idade da Pedra, são lamentavelmente inadequadas na
Idade do Silício.
Não só a racionalidade, a individualidade também é um mito. Humanos
raramente pensam por si mesmos. E sim, pensamos em grupos. Assim como
é preciso uma tribo para criar uma criança, é preciso uma tribo para inventar
uma ferramenta, resolver um conflito ou curar uma doença. Nenhum
indivíduo sabe tudo o que é preciso para construir uma catedral, uma bomba
atômica ou uma aeronave. O que deu ao Homo sapiens uma vantagem em
relação a todos os outros animais e nos tornou os senhores do planeta não foi
nossa racionalidade individual, mas nossa incomparável capacidade de pensar
juntos em grandes grupos.
Indivíduos humanos, constrangedoramente, pouco sabem sobre o
mundo, e, à medida que a história avançava, sabiam cada vez menos. Um
caçador-coletor na Idade da Pedra sabia como fazer as próprias roupas, como
acender uma fogueira, como caçar coelhos e como escapar de leões. Nós
pensamos que hoje sabemos muito mais, mas como indivíduos na verdade
sabemos muito menos. Baseamo-nos na expertise de outros para quase todas
as nossas necessidades. Num experimento humilhante, pediu-se a pessoas que
avaliassem o quanto compreendiam como funcionava um zíper comum. A
maioria respondeu confiantemente que compreendia muito bem — afinal,
usavam zíper o tempo todo. Pediu-se então que descrevessem com o máximo
de detalhes possível todas as etapas envolvidas na operação do zíper. A maior
parte das pessoas não tinha a menor ideia.
2
Isto é o que Steven Sloman e
Philip Fernbach denominaram “a ilusão do conhecimento”. Pensamos que
sabemos muito, mesmo quando individualmente sabemos muito pouco,
porque tratamos o conhecimento dos outros como se fosse nosso.
Isso não é necessariamente ruim. Nossa confiança no pensamento de
grupo nos fez senhores do mundo, e a ilusão do conhecimento nos permite
atravessar a vida sem cairmos em um esforço impossível para compreender
tudo por nós mesmos. De uma perspectiva evolutiva, confiar no
conhecimento de outros funcionou extremamente bem para o Homo sapiens.
Mas, assim como outros traços humanos que faziam sentido em eras
passadas mas causam problemas na era moderna, a ilusão do conhecimento
tem suas desvantagens. O mundo está ficando cada vez mais complexo, e as
pessoas não se dão conta de quão ignorantes são. Consequentemente,
algumas que não sabem quase nada de meteorologia ou biologia propõem
assim mesmo políticas concernentes à mudança climática e a plantas
geneticamente modificadas, enquanto outras mantêm opiniões muito firmes
quanto ao que deveria ser feito no Iraque ou na Ucrânia, sem serem capazes
de localizar esses países no mapa. Pessoas raramente contemplam sua
ignorância, porque se fecham numa câmara de eco com amigos que pensam
como eles e com feeds de notícias que se autoconfirmam, fazendo com que
suas crenças sejam constantemente reiteradas e raramente desafiadas.
É improvável que oferecer às pessoas mais informações melhore a
situação. Cientistas esperam poder dissipar concepções equivocadas com
educação científica, e especialistas esperam influir na opinião pública em
questões como o Obamacare ou o aquecimento global apresentando ao
público fatos precisos e relatórios de especialistas. Essas esperanças baseiamse numa compreensão equivocada de como os humanos efetivamente
pensam. A maior parte de nossas opiniões é formada por pensamento
comunitário e não em racionalidade individual, e adotamos essas opiniões por
lealdade ao grupo. Bombardear pessoas com fatos e expor sua ignorância
individual provavelmente será um tiro pela culatra. A maioria das pessoas
não gosta de dados demais, e certamente não gosta de se sentir idiota. Não
esteja certo de que pode convencer os que apoiam o Tea Party de que o
aquecimento global é um fato apresentando-lhes planilhas e estatísticas.
O poder do pensamento de grupo é tão penetrante que é difícil se livrar
dele mesmo quando parece ser bastante arbitrário. Assim, nos Estados
Unidos, conservadores de direita tendem a se incomodar muito menos do que
progressistas de esquerda com coisas como poluição e espécies ameaçadas de
extinção, motivo pelo qual a Louisiana tem regulamentos ambientais muito
menos rigorosos do que Massachusetts. Estamos acostumados com essa
situação, por isso a achamos natural, mas na realidade ela é bem
surpreendente. Poderíamos pensar que os conservadores se importariam
muito mais com a conservação da velha ordem ecológica e com a proteção de
suas terras, florestas e rios ancestrais. Em contraste, poderíamos esperar que
os progressistas estivessem muito mais abertos a mudanças radicais no
campo, especialmente se elas visam a acelerar o progresso e melhorar o
padrão da vida humana. Contudo, como as posições políticas quanto a essas
questões foram estabelecidas por vários acasos históricos, tornou-se uma
segunda natureza dos conservadores ignorar preocupações ambientais,
enquanto progressistas de esquerda tendem a temer qualquer ruptura da
antiga ordem ecológica.
Nem mesmo os cientistas são imunes ao poder do pensamento de grupo.
Assim, cientistas que acreditam que fatos podem mudar a opinião pública
podem ser vítimas de pensamento de grupo científico. A comunidade
científica se baseia na eficácia dos fatos, daí que os que são leais a essa
comunidade creem que podem vencer debates públicos despejando dados,
apesar de haver muita evidência empírica do contrário.
Da mesma forma, a crença liberal na racionalidade individual pode ser
produto de um pensamento de grupo. Em um dos momentos climáticos do
filme A vida de Brian, do Monty Python, uma enorme multidão de seguidores
esperançosos e ingênuos confunde Brian com o Messias. Brian diz a seus
discípulos que “vocês não precisam me seguir, vocês não precisam seguir
ninguém! Vocês têm de pensar por si mesmos! Vocês são indivíduos! Todos
vocês são diferentes!”. A multidão entusiasmada entoa em uníssono: “Sim!
Somos todos diferentes!”. O Monty Python estava parodiando a contracultura
ortodoxa da década de 1960, mas a questão ali pode ser a crença no
individualismo racional. As democracias modernas estão cheias de multidões
gritando em uníssono: “Sim, o eleitor sabe o que é melhor! Sim, o cliente tem
sempre razão!”.
O BURACO NEGRO DO PODER
O problema do pensamento de grupo e da ignorância individual envolve
não apenas eleitores e clientes comuns, mas também presidentes e CEOs. Eles
podem ter a sua disposição agências de inteligência e muitos conselheiros,
mas isso não faz necessariamente com que as coisas fiquem melhores. É
muito difícil descobrir a verdade quando você está governando o mundo.
Você simplesmente está ocupado demais. A maioria dos líderes políticos e
grandes empresários estão eternamente atarefados. Se você quiser se
aprofundar em qualquer assunto, vai precisar de muito tempo e,
principalmente, do privilégio de poder desperdiçar tempo. Terá de
experimentar caminhos improdutivos, explorar becos sem saída, abrir espaço
para as dúvidas e o tédio e permitir que pequenas sementes de ideias cresçam
lentamente e floresçam. Se você não pode se dar ao luxo de perder tempo,
nunca encontrará a verdade.
Pior ainda, as grandes potências quase sempre distorcem a verdade.
Poder diz respeito a mudar a realidade e não a enxergá-la como ela é. Quando
você tem em mãos um martelo, tudo parece prego, e quando tem um grande
poder nas mãos, tudo parece um convite para se intrometer. Mesmo que de
algum modo você supere esse impulso, as pessoas a sua volta nunca se
esquecerão do martelo gigante nas suas mãos. Quem quer que fale com você
terá sua própria agenda, e por isso você nunca poderá acreditar totalmente no
que dizem. Nenhum sultão poderá jamais confiar que seus cortesãos e
subalternos estão lhe dizendo a verdade.
Assim, um grande poder atua como um buraco negro que deforma o
próprio espaço a sua volta. Quanto mais próximo você estiver, mais
distorcido torna-se tudo. Cada palavra ganha um peso extra ao entrar em sua
órbita, e cada pessoa que você vê tenta bajular, agradar ou obter alguma coisa
de você. Elas sabem que você não pode conceder-lhes mais de um minuto ou
dois, e temem dizer algo impróprio ou confuso, por isso acabam por se
limitar a lemas vazios ou aos maiores clichês.
Alguns anos atrás fui convidado para um jantar com o primeiro-ministro
de Israel, Benjamin Netanyahu. Amigos aconselharam-me a não ir, mas não
consegui resistir à tentação. Pensei que finalmente ouviria alguns dos grandes
segredos que só se divulgam a orelhas importantes atrás de portas fechadas.
Que decepção! Havia lá cerca de trinta pessoas, e cada uma delas tentava
obter a atenção do Grande Homem, impressioná-lo com sua verve, pedir um
favor ou obter alguma coisa dele. Se alguém lá sabia de algum grande
segredo, fez um excelente trabalho guardando-o para si mesmo. Dificilmente
foi culpa de Netanyahu, na verdade não foi culpa de ninguém. A culpa é da
atração gravitacional do poder.
Se você de fato quer a verdade, precisa escapar do buraco negro do
poder, e permitir-se desperdiçar muito tempo vagando aqui e ali na periferia.
O conhecimento revolucionário raramente chega ao centro, porque o centro
está construído sobre um conhecimento já existente. Os guardiões da velha
ordem normalmente determinam quem vai chegar aos centros do poder, e
tendem a reter no filtro os portadores de perturbadoras ideias não
convencionais. É claro que eles filtram também uma incrível quantidade de
refugo. Não ser convidado para o Fórum Econômico Mundial em Davos
dificilmente é garantia de sabedoria. É por isso que você precisa perder tanto
tempo na periferia — ela pode conter algumas brilhantes ideias
revolucionárias, mas está cheia de palpites desinformados, modelos
desmascarados, dogmas supersticiosos e ridículas teorias conspiratórias
Os líderes ficam presos num dilema. Se permanecerem no centro do
poder, terão uma visão extremamente distorcida da vida. Se se aventurarem
nas margens, desperdiçarão seu precioso tempo. E o problema só vai ficar
pior. Nas próximas décadas o mundo será ainda mais complexo do que é
hoje. Consequentemente, indivíduos humanos — sejam peões ou reis —
saberão ainda menos sobre as engenhocas tecnológicas, as correntes
econômicas e as dinâmicas políticas que dão forma ao mundo. Como
observou Sócrates há mais de 2 mil anos, o melhor que podemos fazer nessas
condições é reconhecer nossa própria ignorância individual.
Mas e quanto à moralidade e à justiça? Se não somos capazes de
compreender o mundo, como podemos esperar saber qual é a diferença entre
o certo e o errado, entre a justiça e a injustiça?
16. Justiça
Nosso senso de justiça pode estar desatualizado
Como todos os nossos outros sensos, nosso senso de justiça tem antigas
raízes evolutivas. A moralidade humana foi moldada no decurso de milhões
de anos de evolução, adaptada para lidar com os dilemas sociais e éticos que
surgiram na vida de pequenos bandos de caçadores-coletores. Se eu saísse
para caçar com você e matasse um veado, e você não pegasse nada, eu
deveria compartilhar meu butim com você? Se você fosse colher cogumelos e
voltasse com um cesto cheio, o fato de eu ser mais forte que você permite que
pegue todos esses cogumelos para mim? E se eu souber que você está
tramando me matar, tudo bem se eu agir preventivamente e cortar sua
garganta na escuridão da noite?
À primeira vista, as coisas não mudaram muito desde que deixamos as
savanas africanas e fomos para a selva urbana. Poderíamos pensar que as
questões que enfrentamos hoje — a guerra civil na Síria, a desigualdade
global, o aquecimento global — são só as mesmas antigas questões em
grande escala. Mas isso é uma ilusão. O tamanho importa, e do ponto de vista
da justiça, como de muitos outros pontos de vista, é difícil dizer que estamos
adaptados ao mundo no qual vivemos.]
O problema não é de valores. Sejam seculares ou religiosos, os cidadãos
do século XXI têm muitos valores. O problema é implementar esses valores
num mundo global complexo. É tudo culpa dos números. O senso de justiça
dos nossos ancestrais era estruturado para lidar com dilemas relativos à vida
de algumas dezenas de pessoas em poucas dezenas de quilômetros quadrados.
Quando tentamos compreender relações entre milhões de pessoas em
continentes inteiros, nosso senso moral fica assoberbado.
A justiça exige não apenas um conjunto de valores abstratos, mas
também uma compreensão das relações concretas de causa e efeito. Se você
coletou cogumelos para alimentar seus filhos e eu tiro de você à força o cesto
de cogumelos, o que quer dizer que todo seu esforço foi em vão e seus filhos
irão dormir com fome, isso é injusto. É fácil perceber isso, porque é fácil ver
as relações de causa e efeito. Infelizmente, uma característica inerente a
nosso mundo global moderno é que suas relações causais são muito
ramificadas e complexas. Eu posso estar vivendo pacificamente em minha
casa, nunca ter levantado um dedo contra ninguém, e ainda assim, de acordo
com ativistas da esquerda, ser um conivente de soldados israelenses e colonos
na Cisjordânia. De acordo com os socialistas, minha vida confortável baseia-se no labor de crianças em locais de trabalho sombrios e degradados. Os
defensores do bem-estar dos animais lembram-me que minha vida está
entrelaçada com um dos mais pavorosos crimes na história — a subjugação
de bilhões de animais de criação a um regime brutal de exploração.
Posso realmente ser culpado por tudo isso? Não é fácil dizer. Como
dependo, para existir, de uma espantosa rede de laços econômicos e políticos,
e como as conexões causais globais são tão intricadas, é difícil responder até
às mais simples perguntas, como de onde vem meu almoço, quem fez os
sapatos que estou calçando e o que o meu fundo de pensão está fazendo com
meu dinheiro.
2
ROUBANDO RIOS
Um caçador-coletor sabia muito bem de onde vinha seu almoço (ele
mesmo o obtinha), quem fazia seus mocassins (dormia a vinte metros dele) e
o que estava fazendo seu fundo de pensão. (Estava brincando na lama.
Naquela época as pessoas só tinham um fundo de pensão, chamado “filhos”.)
Sou muito mais ignorante do que um caçador-coletor. Anos de pesquisa
podem revelar que o governo no qual votei está secretamente vendendo
armas a um sombrio ditador no outro lado do mundo. Mas, durante o tempo
que me leva para descobrir isso, eu poderia estar perdendo descobertas muito
mais importantes, como o destino das galinhas cujos ovos eu comi no jantar.
O sistema está estruturado de tal maneira que aqueles que não se
esforçam por saber podem permanecer numa feliz ignorância, e os que fazem
um esforço vão descobrir que é muito difícil saber a verdade. Como é
possível impedir o roubo quando o sistema econômico global está
incessantemente roubando, em meu nome e sem meu conhecimento? Não
importa se você julga ações por suas consequências (é errado roubar porque
isso prejudica as vítimas) ou se acredita em deveres categóricos que devem
ser cumpridos independentemente das consequências (roubar é errado porque
assim disse Deus). O problema é que se tornou complicado demais ter noção
do que estamos de fato fazendo.
O mandamento de não roubar foi formulado numa época na qual roubo
significava tomar, com suas próprias mãos, algo que não lhe pertence. Mas
hoje roubo remete a cenários completamente diferentes. Suponha que eu
invista 10 mil dólares em ações de uma grande empresa petroquímica, que
me provê um retorno anual de 5% de meu investimento. A corporação é
muito lucrativa, porque não paga por danos colaterais. Ela despeja lixo tóxico
num rio próximo sem se importar com os danos para os reservatórios de água
da região, para a saúde pública ou para a fauna local. Usa sua riqueza para
recrutar uma legião de advogados que a defendem de qualquer exigência de
indenização. Conta também com lobistas que bloqueiam toda tentativa de
criação de leis mais rigorosas de regulação ambiental.
Podemos acusar a empresa de “roubar um rio”? E quanto a mim,
pessoalmente? Eu nunca arrombo a casa ou roubo dinheiro da bolsa de
ninguém. Não tenho conhecimento de como essa corporação específica está
gerando seus lucros. Mal me recordo que parte de minha carteira está
investida nela. Sendo assim, sou culpado por roubo? Como podemos agir
moralmente quando não temos como conhecer todos os fatos relevantes?
Pode-se tentar esquivar do problema adotando uma “moralidade de
intenções”. O importante é o que eu pretendo, não o que efetivamente faço,
ou o resultado do que faço. No entanto, num mundo no qual tudo é
interconectado, o supremo imperativo moral torna-se o imperativo de saber.
Os maiores crimes na história moderna resultaram não só de ódio ou
ganância, mas principalmente de ignorância e indiferença. Encantadoras
damas inglesas financiaram o tráfico de escravos no Atlântico comprando
ações e títulos na Bolsa de Londres, sem nunca terem posto o pé na África ou
no Caribe. Elas depois adoçavam o chá das quatro com cubos de açúcar
brancos como a neve, produzidos em plantations infernais — sobre as quais
elas nada sabiam
Na Alemanha, no fim da década de 1930, o gerente de um posto de
correio local poderia ser um cidadão íntegro cuidando do bem-estar de seus
funcionários e ajudando pessoalmente pessoas angustiadas a encontrar seus
pacotes desaparecidos. Era sempre o primeiro a chegar ao trabalho e o último
a sair, e, mesmo quando havia tempestades de neve, assegurava-se de que a
correspondência chegasse no horário. Mas, infelizmente, sua eficiente e
hospitaleira agência de correios era uma célula vital no sistema nervoso do
Estado nazista. Estava distribuindo propaganda racista, ordens de
recrutamento para a Wehrmacht e drásticas instruções para a sede local das
SS. Algo está errado quanto às intenções de quem não faz um esforço sincero
para saber.
Mas o que pode ser considerado “um esforço sincero para saber”?
Deveriam os chefes dos correios em cada país abrir a correspondência que
estão entregando e se demitirem ou se revoltarem se descobrirem propaganda
do governo? É fácil olhar retrospectivamente para a Alemanha nazista de
década de 1930 com absoluta certeza moral — porque sabemos aonde chegou
essa corrente de causas e efeitos. Mas, sem a vantagem da visão
retrospectiva, a certeza moral pode estar fora de nosso alcance. A verdade
amarga é que o mundo ficou complicado demais para nosso cérebro de
caçadores-coletores.
A maior parte das injustiças no mundo contemporâneo resulta de vieses
estruturais em grande escala, e não de preconceitos individuais, e nosso
cérebro de caçadores-coletores não evoluiu a ponto de detectar vieses
estruturais. Somos cúmplices de pelo menos alguns desses vieses, e
simplesmente não temos tempo nem energia para descobrir todos eles. O
processo de escrever este livro me ensinou essa lição, num nível pessoal.
Quando discuto questões globais, estou sempre correndo perigo de privilegiar
o ponto de vista da elite global em relação ao de vários grupos
desfavorecidos. A elite global comanda a conversa, assim é impossível
ignorar suas opiniões. Grupos desfavorecidos, em contraste, são
rotineiramente silenciados, e assim fica fácil se esquecer deles — não por
malícia deliberada, mas por pura ignorância.
Por exemplo, não sei absolutamente nada sobre as opiniões e os
problemas específicos e singulares dos aborígenes da Tasmânia. Na verdade,
sei tão pouco sobre eles que num livro anterior presumi que os aborígenes da
Tasmânia não existem mais, porque foram todos aniquilados por
colonizadores europeus. Na verdade, existem hoje milhares de pessoas vivas
cujos ancestrais remontam à população aborígene da Tasmânia, e que
enfrentam muitos problemas que lhes são únicos — um dos quais é que sua
própria existência é frequentemente negada, até mesmo por estudiosos
instruídos.
Mesmo que você pertença a um grupo desfavorecido, e tenha em
primeira mão uma compreensão de seus pontos de vista, isso não significa
que você compreende o ponto de vista de todos os outros grupos semelhantes.
Pois cada grupo e subgrupo estão diante de diferentes emaranhados de
fragilidades, tratamentos desiguais, insultos codificados e discriminação
institucional. Um homem afro-americano com trinta anos de idade tem uma
experiência de trinta anos do que significa ser um homem afro-americano.
Mas não tem experiência do que é ser uma mulher afro-americana, uma
cigana búlgara, uma russa cega ou uma lésbica chinesa.
Enquanto crescia, esse homem afro-americano era repetidamente detido
e revistado pela polícia sem motivo aparente — algo pelo qual a lésbica
chinesa nunca teve de passar. Em contraste, ter nascido numa família afroamericana numa vizinhança afro-americana significa que ele estava cercado
de pessoas como ele, que lhe ensinaram o que precisava saber para poder
sobreviver e evoluir como um homem afro-americano. A lésbica chinesa não
nasceu numa família lésbica, numa vizinhança lésbica, e talvez não tenha tido
ninguém no mundo que lhe desse lições básicas. Daí que crescer como negro
em Baltimore dificilmente faz com que seja fácil compreender a luta de
crescer como lésbica em Hangzhou.
Em épocas mais antigas isso tinha menos importância, porque você não
se sentia responsável pelas dificuldades de gente que vivia do outro lado do
mundo. Em geral, fazer um esforço para simpatizar com seus vizinhos menos
afortunados já era suficiente. Mas hoje os grandes debates globais sobre
coisas como mudança climática e inteligência artificial têm impacto sobre
todos — seja na Tasmânia, em Hangzhou ou em Baltimore —, por isso temos
de levar em conta todos os pontos de vista. Porém, como fazer isso? Como
compreender a rede de relações entre milhares de grupos que se intersectam
por todo o mundo?
MINIMIZAR OU NEGAR?
Mesmo que realmente queiramos, a maioria de nós não é mais capaz de
compreender os grandes problemas reais do mundo. Podem-se compreender
as relações entre dois caçadores-coletores, entre vinte deles, ou entre dois clãs
vizinhos. Mas as pessoas são mal equipadas para compreender as relações
entre vários milhões de sírios, entre 500 milhões de europeus, ou entre todos
os grupos e subgrupos do planeta que se intersectam.
Ao tentar entender e julgar dilemas morais nessa escala, as pessoas
frequentemente recorrem a um de quatro métodos. O primeiro é minimizar a
questão: compreender a guerra civil síria como se estivesse ocorrendo entre
dois caçadores-coletores; imaginar o regime de Assad como uma pessoa só e
os rebeldes como outra pessoa, uma má e outra boa. A complexidade
histórica do conflito é substituída por uma trama simples e clara.
O segundo é focar numa narrativa humana tocante, que supostamente se
aplica a todo o conflito. Quando você tenta explicar às pessoas a verdadeira
complexidade do conflito por meio de estatística e dados precisos, você as
perde; porém uma narrativa pessoal sobre a sina de uma criança ativa os
canais lacrimais, faz o sangue ferver e cria uma falsa certeza moral.
5
Isso é
algo que muitas instituições de caridade compreenderam durante muito
tempo. Num experimento digno de nota, pediu-se a pessoas que doassem
dinheiro para ajudar uma pobre menina do Mali, de sete anos de idade,
chamada Rokia. Muitos se comoveram com sua história e abriram corações e
bolsos. Contudo, quando além da história pessoal de Rokia os pesquisadores
também apresentaram estatísticas sobre o problema mais amplo da pobreza
na África, os respondentes ficaram menos dispostos a ajudar. Em outro
estudo, pediram-se doações para ajudar ou uma criança doente ou oito
crianças doentes. As pessoas deram mais dinheiro à criança única do que ao
grupo de oito.
O terceiro método para lidar com dilemas morais em grande escala é
tecer teorias de conspiração. Entender como funciona a economia global, e se
esse funcionamento é bom ou ruim, é complicado demais. É muito mais fácil
imaginar que vinte multibilionários estão puxando as cordinhas nos
bastidores, controlando a mídia e fomentando guerras para enriquecer. Quase
sempre essa é uma fantasia sem fundamento. O mundo contemporâneo é
muito complexo, não só para nosso senso de justiça, mas também para nossas
capacidades gerenciais. Ninguém — inclusive os multibilionários, a CIA, os
maçons e os Sábios de Sion — compreende realmente o que está acontecendo
no mundo. Assim, ninguém é capaz de puxar as cordinhas.
Esses três métodos tentam negar a verdadeira complexidade do mundo.
O quarto e último método é criar um dogma, depositar nossa fé em alguma
teoria, instituição ou liderança supostamente onisciente, e segui-la para onde
nos levar. Dogmas religiosos e ideológicos ainda são atraentes em nossa era
científica justamente porque nos oferecem um porto seguro para a frustrante
complexidade da realidade. Como já observado, movimentos seculares não
estão livres desse perigo. Mesmo se você começar com uma rejeição de todos
os dogmas religiosos e com um firme comprometimento com a verdade
científica, cedo ou tarde a complexidade da realidade torna-se tão
acabrunhante que se é levado a conceber uma doutrina que não seria
questionada. Ainda que tal doutrina possa prover as pessoas de conforto
intelectual e certeza moral, é discutível que ela possa prover justiça.
O que deveríamos fazer então? Deveríamos adotar o dogma liberal e
confiar no agregado de eleitores e clientes individuais? Ou talvez devêssemos
rejeitar a abordagem individualista e, como muitas culturas anteriores na
história, empoderar comunidades que adquiram um senso do mundo juntas?
Uma solução assim, no entanto, só nos tira da frigideira da ignorância
individual para nos jogar na fogueira do enviesado pensamento de grupo.
Bandos de caçadores-coletores, comunidades rurais e até mesmo bairros
urbanos podiam pensar juntos sobre os problemas em comum que enfrentam.
Mas hoje temos problemas globais sem ter uma comunidade global. Nem o
Facebook, nem o nacionalismo ou a religião estão próximos de criar essa
comunidade. Todas as tribos humanas existentes estão empenhadas em fazer
avançar seus interesses particulares e não em compreender a verdade global.
Nem americanos, nem chineses, muçulmanos ou hindus constituem a
“comunidade global” — e assim sua interpretação da realidade dificilmente
será confiável.
Deveríamos então desistir e declarar que a busca humana por entender a
verdade e encontrar justiça fracassou? Entramos oficialmente na era da pós-verdade?
17. Pós-verdade
Algumas fake news duram para sempre
Atualmente se repete que estamos vivendo uma nova e assustadora era
da “pós-verdade”, e que estamos cercados de mentiras e ficções. Não é difícil
oferecer exemplos. No final de fevereiro de 2014, unidades especiais russas,
sem ostentar insígnias de um exército, invadiram a Ucrânia e ocuparam
instalações-chave na Crimeia. O governo russo e o presidente Putin em
pessoa negaram repetidamente que eram tropas russas, e as descreveram
como “grupos de autodefesa” espontâneos que poderiam ter adquirido
equipamento parecido com o russo em lojas locais.
1 Ao fazer essa declaração
absurda, Putin e seus assessores sabiam perfeitamente bem que estavam
mentindo.
Nacionalistas russos são capazes de desculpar essa mentira alegando que
ela atende a uma verdade maior. A Rússia estava engajada numa guerra justa,
e, se é válido matar por uma causa justa, também não seria válido mentir? A
causa mais elevada que alegadamente justificaria a invasão da Ucrânia era a
preservação da sagrada nação russa. Segundo mitos nacionais, a Rússia é uma
entidade que perdurou por mil anos apesar de repetidas tentativas de inimigos
perversos de invadi-la e desmembrá-la. Depois dos mongóis, dos poloneses,
dos suecos, da Grande Armée de Napoleão e da Wehrmacht de Hitler, na
década de 1990 foi a Otan, os Estados Unidos e a União Europeia que
tentaram destruir a Rússia, desmembrando partes de seu território e formando
com eles “falsos países”, como a Ucrânia. Para muitos nacionalistas russos, a
ideia de que a Ucrânia é uma nação separada da Rússia é uma mentira muito
maior do que qualquer coisa pronunciada pelo presidente Putin durante sua
missão sagrada de reintegrar a nação russa.
Cidadãos ucranianos, observadores externos e historiadores podem
sentir-se ultrajados por essa explicação, e encará-la como uma espécie de
“bomba atômica da mentira” no arsenal russo de embustes. Alegar que a
Ucrânia não existe como nação e como país independente é desconsiderar
uma longa lista de fatos históricos — por exemplo, que durante os mil anos
de suposta unidade russa, Kíev e Moscou foram parte do mesmo país por
somente trezentos anos. Isso também viola numerosas leis e tratados
internacionais que a Rússia tinha aceitado e que salvaguardaram a soberania e
as fronteiras da Ucrânia independente. Mais importante, ignora o que milhões
de ucranianos pensam de si mesmos. Será que eles não têm o direito de dizer
quem são?
Os nacionalistas ucranianos certamente concordariam com os
nacionalistas russos de que existem por aí alguns falsos países. Mas a Ucrânia
não é um deles. E, sim, esses falsos países são a “República Popular de
Lugansk” e a “República Popular de Donetsk”, que a Rússia estabeleceu para
mascarar sua não provocada invasão da Ucrânia.
Seja qual for o lado que você apoia, parece que estamos realmente
vivendo uma era terrível da pós-verdade, quando não só incidentes militares
específicos, mas narrativas e nações inteiras podem ser falsificadas. Mas, se
essa é a era da pós-verdade, quando, exatamente, foi a era de ouro da
verdade? Na década de 1980? De 1950? 1930? E o que desencadeou a
transição para a pós-verdade — a internet? A mídia social? A ascensão de
Putin e Trump?
Uma análise superficial da história revela que a propaganda e a
desinformação não são nada novas, e até mesmo o hábito de negar nações
inteiras e criar países falsos tem um longo pedigree. Em 1931 o Exército
japonês encenou ataques simulados a si mesmo para justificar sua invasão da
China, e depois criou o país falso de Manchukuo para legitimar suas
conquistas. A própria China negou durante muito tempo que o Tibete alguma
vez tenha existido como país independente. A colonização britânica na
Austrália foi justificada com a doutrina legal de terra nullius (“terra de
ninguém”), que efetivamente apagou 50 mil anos de história aborígene.
No início do século XX, um dos lemas favoritos do sionismo falava do
retorno de “um povo sem terra [os judeus] a uma terra sem povo [Palestina]”.
A existência de uma população árabe local foi convenientemente ignorada.
Em 1969 a primeira-ministra israelense Golda Meir disse que não existe e
nunca existiu um povo palestino. Essas ideias são muito comuns em Israel até
hoje, apesar de décadas de conflitos armados contra algo que não existe. Por
exemplo, em fevereiro de 2016, a parlamentar Anat Berko fez um discurso no
Parlamento de Israel no qual duvidava da realidade e da história do povo
palestino. Sua prova? A letra “P” nem sequer existe em árabe, então como
pode haver um povo palestino? (Em árabe, usa-se “f” em lugar de “p”, e o
nome árabe para a Palestina é Falastin.)
A ESPÉCIE DA PÓS-VERDADE
Os humanos sempre viveram na era da pós-verdade. O Homo sapiens é
uma espécie da pós-verdade, cujo poder depende de criar ficções e acreditar
nelas. Desde a Idade da Pedra, mitos que se autorreforçavam serviram para
unir coletivos humanos. Realmente, o Homo sapiens conquistou esse planeta
graças, acima de tudo, à capacidade exclusiva dos humanos de criar e
disseminar ficções. Somos os únicos mamíferos capazes de cooperar com
vários estranhos porque somente nós somos capazes de inventar narrativas
ficcionais, espalhá-las e convencer milhões de outros a acreditar nelas.
Enquanto todos acreditarmos nas mesmas ficções, todos nós obedecemos às
mesmas leis e, portanto, cooperamos efetivamente.
Assim, se você culpa o Facebook, Trump ou Putin por introduzir a nova
e assustadora era da pós-verdade, lembre-se de que séculos atrás milhões de
cristãos se fecharam dentro de uma bolha mitológica que se autorreforçava,
nunca ousando questionar a veracidade factual da Bíblia, enquanto milhões
de muçulmanos depositaram sua fé inquestionável no Corão. Por milênios,
muito do que era considerado “notícia” e “fato” nas redes sociais humanas
eram narrativas sobre milagres, anjos, demônios e bruxas, com ousados
repórteres dando cobertura ao vivo diretamente das mais profundas fossas do
submundo. Temos zero evidência científica de que Eva foi tentada pela
serpente, que as almas dos infiéis ardem no inferno depois que morrem ou
que o criador do universo não gosta quando um brâmane se casa com um
intocável — mas bilhões de pessoas têm acreditado nessas narrativas durante
milhares de anos. Algumas fake news duram para sempre.
Estou ciente de que muita gente poderá se aborrecer por eu equiparar
religião com fake news, mas este é exatamente o ponto. Quando mil pessoas
acreditam durante um mês numa história inventada — isso é fake news.
Quando 1 bilhão de pessoas acreditam durante milhares de anos — isto é uma
religião, e somos advertidos a não chamar de fake news para não ferir os
sentimentos dos fiéis (ou incorrer em sua ira). Observe, no entanto, que não
estou negando a efetividade ou benevolência potencial da religião.
Exatamente o contrário. Para o bem ou para o mal, a ficção está entre os
instrumentos mais eficazes na caixa de ferramentas da humanidade. Ao unir
pessoas, credos religiosos possibilitam a cooperação em grande escala. Eles
inspiram a construção de hospitais, escolas e pontes, além de exércitos e
prisões. Adão e Eva nunca existiram, mas a catedral de Chartres continua
linda. Grande parte da Bíblia pode ser ficcional, mas ainda é capaz de trazer
alegria a bilhões, e ainda é capaz de incentivar os humanos a serem
compassivos, corajosos e criativos — assim como outras grandes obras de
ficção, como Dom Quixote, Guerra e paz e Harry Potter.
De novo, algumas pessoas podem se ofender com minha comparação da
Bíblia com Harry Potter. Se você é um cristão com mente científica poderia
minimizar todos os erros e mitos na Bíblia alegando que nunca se pretendeu
que o livro sagrado fosse lido como um relato factual, e sim como uma
narrativa metafórica que encerra profunda sabedoria. Mas isso não vale para
Harry Potter também?
Se você é um cristão fundamentalista é mais provável que insista em que
cada palavra da Bíblia é verdade. Suponhamos por um momento que você
tem razão, e que a Bíblia realmente é a infalível palavra do único e
verdadeiro Deus. O que, então, você faz com o Corão, o Talmude, o Livro
dos Mórmons, os Vedas, o Avesta, o Livro dos Mortos egípcio? Você não
fica tentado a dizer que esses textos são elaboradas ficções criadas por
humanos de carne e osso (ou talvez por demônios)? E como vê você a
divindade de imperadores romanos como Augusto e Cláudio? O Senado
Romano alegava ter o poder de transformar pessoas em deuses, e depois
esperava que os súditos do império cultuassem esses deuses. Isso não era
ficção? De fato, temos pelo menos um exemplo na história de um falso deus
que reconheceu a ficção numa declaração por sua própria boca. Como já
observado, o militarismo japonês na década de 1930 e início da de 1940
apoiava-se na crença fanática na divindade do imperador Hirohito. Após a
derrota do Japão, Hirohito proclamou publicamente que isso não era verdade,
e que ele afinal de contas não era um deus.
Assim, mesmo se concordarmos que a Bíblia é a verdadeira palavra de
Deus, isso ainda nos deixa com bilhões de devotos hindus, muçulmanos,
judeus, egípcios, romanos e japoneses que durante milhares de anos
depositaram sua confiança em ficções. De novo, isso não quer dizer que essas
ficções são necessariamente desprovidas de valor ou danosas. Ainda podem
ser belas e inspiradoras.
É claro que nem todos os mitos religiosos foram igualmente
benevolentes. Em 29 de agosto de 1255, o corpo de um menino inglês de
nove anos de idade chamado Hugh foi encontrado num poço, na cidade de
Lincoln. Mesmo sem Facebook nem Twitter, rapidamente espalhou-se o
boato de que Hugh tinha sido vítima de um assassinato ritual realizado pelos
judeus locais. A história foi crescendo à medida que era recontada, e um dos
mais renomados cronistas ingleses da época — Matthew Paris — criou uma
detalhada e sangrenta versão de como judeus proeminentes de toda a
Inglaterra reuniram-se em Lincoln para engordar, torturar e finalmente
crucificar o menino sequestrado. Dezenove judeus foram julgados e executados pelo suposto assassinato. Libelos de sangue semelhantes
tornaram-se populares em outras cidades inglesas, levando a uma série de
pogroms nos quais comunidades inteiras foram massacradas. Posteriormente,
em 1290, toda a população judaica da Inglaterra foi expulsa do país.
A história não termina aí. Um século depois da expulsão dos judeus da
Inglaterra, Geoffrey Chaucer — o pai da literatura inglesa — incluiu um
libelo de sangue modelado na história de Hugh de Lincoln em seus Contos da
Cantuária (“Conto da Prioresa”). O texto culmina com o enforcamento dos
judeus. Libelos de sangue semelhantes tornaram-se subsequentemente
componentes básicos de todo movimento antissemita, da Espanha medieval à
Rússia moderna. Pôde-se ouvir um eco distante disso na fake news de que
Hillary Clinton chefiava uma rede de tráfico humano que mantinha crianças
como escravas sexuais no porão de uma pizzaria muito frequentada. Não
foram poucos os americanos que acreditaram na história, destinada a
prejudicar a campanha eleitoral de Clinton, e uma pessoa até veio armada à
pizzaria e exigiu ver o porão (constatou-se que a pizzaria nem tinha porão).
Quanto ao próprio Hugh de Lincoln, ninguém sabe realmente como ele
morreu, mas foi enterrado na catedral de Lincoln e venerado como um santo.
Foi reputado como o realizador de vários milagres, e seu túmulo continua a
atrair peregrinos até mesmo séculos depois da expulsão de todos os judeus da
Inglaterra.
5 Foi somente em 1955 — dez anos após o Holocausto — que a
catedral de Lincoln repudiou a versão do libelo de sangue, colocando uma
placa junto ao túmulo, onde se lê: Histórias inventadas de “assassinatos
rituais” de meninos cristãos por comunidades judaicas eram comuns em toda
a Europa durante a Idade Média, e mesmo muito mais tarde. Essas ficções
custaram a vida de muitos judeus inocentes. Lincoln teve sua própria lenda, e
a alegada vítima foi sepultada na Catedral no ano de 1255. Essas histórias
não redundam em crédito para a Cristandade.
Bem, algumas fake news duram apenas setecentos anos.
UMA VEZ MENTIRA, SEMPRE VERDADE
Religiões antigas não foram as únicas que usaram ficção para cimentar
cooperação. Em tempos mais recentes, cada nação criou sua própria
mitologia nacional, enquanto movimentos como o comunismo, o fascismo e
o liberalismo modelaram elaborados credos que se autorreforçam. Diz-se que
Joseph Goebbels, o maestro da propaganda nazista, e talvez o mais realizado
mago da mídia da era moderna, explicou seu método sucintamente
declarando que “uma mentira dita uma vez continua uma mentira, mas uma
mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Em Mein Kampf, Hitler escreveu
que “a mais brilhante técnica de propaganda não vai ter sucesso a menos que
se leve sempre em conta um princípio fundamental — ela tem de se limitar a
alguns pontos e repeti-los sem parar”.
8 Será que algum vendedor de fake
news atual é capaz de fazer melhor do que isso?
A máquina de propaganda soviética foi igualmente ágil com a verdade,
reescrevendo a história de tudo, desde guerras inteiras até fotografias
individuais. Em 29 de junho de 1936, o jornal oficial Pravda (“verdade”, em
russo) trazia na primeira página uma foto de um sorridente Josef Stálin
abraçando Gelya Markizova, uma menina de sete anos. A imagem tornou-se
um ícone stalinista, consagrando Stálin como o Pai da Nação e idealizando a
“Feliz Infância Soviética”. Gráficas e fábricas por todo o país produziram
milhões de pôsteres, esculturas e mosaicos da cena, que foram exibidos em
instituições públicas de uma extremidade da União Soviética a outra. Assim
como nenhuma igreja ortodoxa russa está completa sem um ícone da Virgem
Maria segurando o menino Jesus, nenhuma escola soviética poderia dispensar
um ícone de papai Stálin segurando a pequena Gelya.
Infelizmente, no império de Stálin a fama era quase sempre um convite à
catástrofe. Um ano depois da foto, o pai de Gelya foi preso sob a espúria
acusação de que era um espião japonês e um terrorista trotskista. Em 1938 foi
executado, uma das milhões de vítimas do terror stalinista. Gelya e sua mãe
foram exiladas para o Cazaquistão, onde a mãe logo morreu em
circunstâncias misteriosas. O que fazer agora com os incontáveis ícones
mostrando o Pai da Nação com a filha de um condenado “inimigo do povo”?
Sem problema. Daquele momento em diante, Gelya Markizova desapareceu,
e a “Feliz Criança Soviética” na imagem ubíqua foi identificada como
Mamlakat Nakhangova — uma menina tadjique de treze anos que recebeu a
Ordem de Lênin colhendo diligentemente grandes quantidades de algodão
nos campos (se alguém achasse que a menina na foto não parecia ter treze
anos, pensava duas vezes antes de mencionar tal heresia
antirrevolucionária).
A máquina de propaganda soviética era tão eficiente que conseguiu
esconder as atrocidades monstruosas em casa ao mesmo tempo que projetava
uma visão utópica no exterior. Hoje os ucranianos se queixam de que Putin
conseguiu enganar grande parte da mídia ocidental quanto às ações da Rússia
na Crimeia e em Donbas. Mas na arte da enganação ele dificilmente se
equipara a Stálin. No início da década de 1930, jornalistas e intelectuais
ocidentais de esquerda louvavam a União Soviética como uma sociedade
ideal, enquanto ucranianos e outros cidadãos soviéticos morriam de fome aos
milhões por causa das políticas orquestradas por Stálin. Apesar de, na era do
Facebook e do Twitter, ser às vezes difícil decidir em quais versões de um
acontecimento acreditar, pelo menos já não é mais possível um regime matar
milhões sem que o mundo saiba.
Além de religiões e de ideologias, empresas comerciais também se
apoiam em ficção e fake news. Divulgar uma marca envolve recontar a
mesma narrativa ficcional várias vezes, até as pessoas ficarem convencidas
de sua veracidade. Que imagens ocorrem quando você pensa em Coca-Cola?
Você pensa em pessoas jovens e saudáveis praticando esportes e se
divertindo? Ou pensa em pessoas com diabetes e sobrepeso deitadas numa
cama de hospital? Beber Coca-Cola não te deixará mais jovem, mais
saudável, nem mais atlético — e sim mais propenso a sofrer de obesidade e
diabetes. Mas durante décadas a Coca-Cola investiu bilhões de dólares
associando sua imagem a juventude, saúde e esportes — e bilhões de
humanos subconscientemente acreditam nessa associação.
O fato é que a verdade nunca teve papel de destaque na agenda do Homo
sapiens. Muita gente supõe que se uma determinada religião ou ideologia não
representa a realidade, cedo ou tarde seus adeptos acabarão descobrindo,
porque não serão capazes de competir com rivais mais esclarecidos. Bem,
esse é apenas mais um mito reconfortante. Na prática, o poder da cooperação
humana depende de um delicado equilíbrio entre a verdade e a ficção.
Se você distorcer demais a realidade, isso na verdade vai enfraquecê-lo,
fazendo-o agir de maneira irrealista. Por exemplo, em 1905 um médium da
África Oriental chamado Kinjikitile Ngwale alegou estar possuído pelo
espírito da cobra Hongo. O novo profeta tinha uma mensagem revolucionária
para o povo da colônia alemã da África Oriental: unam-se e expulsem os
alemães. Para tornar a mensagem mais atraente, Ngwale proveu seus
seguidores de remédios mágicos que, supostamente, transformariam as balas
dos alemães em água (maji, em suaili). Isso deu início à Rebelião Maji Maji.
Ela fracassou. Porque no campo de batalha as balas alemãs não se
transformaram em água. Em vez disso, elas rasgaram impiedosamente o
corpo dos mal armados rebeldes. Dois mil anos antes, a Grande Revolta
Judaica contra os romanos foi inspirada, de forma parecida, por uma ardente
crença de que Deus lutaria pelos judeus e os ajudaria a derrotar o
aparentemente invencível Império Romano. Isso fracassou também, levando
à destruição de Jerusalém e ao exílio dos judeus.
Por outro lado, você não será capaz de organizar com eficiência grandes
massas sem se apoiar em alguma mitologia. Se ficar preso à realidade crua,
poucas pessoas o seguirão. Sem mitos, teria sido impossível organizar não só
as revoltas Maji Maji e judaicas, mas também as muito mais bem-sucedidas
rebeliões dos Mahdi e dos Macabeus.
As histórias falsas têm uma vantagem intrínseca em relação à verdade
quando se trata de unir pessoas. Se você quer calibrar a lealdade de um
grupo, pedir às pessoas que acreditem num absurdo é um teste muito melhor
do que pedir que acreditem na verdade. Se um grande chefe disser “o sol
nasce no leste e se põe no oeste” não se requer lealdade para aplaudi-lo. Mas
se o chefe disser “o sol nasce no oeste e se põe no leste” apenas os que lhe
forem verdadeiramente leais baterão palmas. Da mesma forma, se todos os
seus vizinhos acreditarem na mesma história absurda, você pode contar com
eles em momentos de crise. Se só aceitam acreditar em fatos comprovados, o
que isso prova?
Poder-se-ia alegar que, ao menos em alguns casos, é possível organizar
pessoas mediante acordos consensuais e não por meio de ficções e mitos.
Assim, na esfera econômica, dinheiro e corporações unem pessoas muito
mais efetivamente do que qualquer deus ou livro sagrado, apesar de todos
saberem que isso é apenas uma convenção criada por humanos. No caso do
livro sagrado, um verdadeiro crente diria “eu acredito que o livro é sagrado”,
enquanto no caso do dólar, um verdadeiro crente diria apenas que “eu
acredito que outras pessoas acreditam que o dólar tem valor”. É óbvio que o
dólar é apenas uma criação humana, porém pessoas do mundo inteiro o
respeitam. Se é assim, por que os humanos não são capazes de abandonar
todos os mitos e ficções, e se organizar com base em convenções
consensuais, como o dólar?
Essas convenções, no entanto, não são claramente diferentes de ficção.
A diferença entre livros sagrados e dinheiro, por exemplo, é muito menor do
que pode parecer à primeira vista. Quando veem uma nota de dólar, a maioria
das pessoas esquece que aquilo é apenas uma convenção humana. Quando
veem o pedaço de papel verde com a figura do homem branco que já morreu,
elas o veem como algo valioso em si mesmo e por si mesmo. Dificilmente
pensam: “Na verdade, isto é um pedaço de papel sem valor, mas, como outras
pessoas o consideram valioso, posso fazer uso dele”. Se você observar um
cérebro humano num escâner de ressonância magnética funcional, verá que
quando se mostra a alguém uma mala cheia de cédulas de cem dólares, as
partes do cérebro que começam a zumbir excitadamente não são as partes
céticas (“outras pessoas acreditam que isto é valioso”) e sim as partes
gananciosas (“Puta merda! Eu quero isso!”). Inversamente, na grande maioria
dos casos, as pessoas só começam a santificar a Bíblia ou os Vedas ou o
Livro dos Mórmons após uma longa e repetida exposição a outras pessoas
que os consideram sagrados. Aprendemos a respeitar livros sagrados da
mesmíssima maneira que aprendemos a respeitar notas de dinheiro.
Daí que, na prática, não existe uma divisão clara entre “saber que algo é
apenas uma convenção humana” e “crer que algo é inerentemente valioso”.
Em muitos casos, as pessoas são ambíguas ou desatentas a essa divisão. Para
dar outro exemplo, se você sentar e tiver uma profunda discussão filosófica
sobre isso, quase todo mundo concordaria que corporações são narrativas
ficcionais criadas por seres humanos. A Microsoft não é os prédios que
possui, as pessoas que emprega ou os acionistas aos quais ela serve — e sim
uma intricada ficção legal tecida por legisladores e advogados. Mas em 99%
do tempo não estamos engajados em profundas discussões filosóficas, e
tratamos as corporações como se fossem entidades reais no mundo, assim
como tigres ou humanos.
Embaçar a linha entre ficção e realidade pode servir a muitos propósitos,
começando com “divertimento”, até “sobrevivência”. Você não pode jogar
jogos ou ler romances a menos que suspenda sua descrença, ao menos por um
momento. Para realmente curtir o futebol, você tem de aceitar as regras do
jogo, e esquecer, ao menos durante noventa minutos, que elas são apenas
invenções humanas. Se não fizer isso, vai achar ridículo que 22 pessoas
fiquem correndo atrás de uma bola. O futebol pode começar como diversão,
mas depois se tornar coisa muito mais séria, como qualquer hooligan inglês
ou nacionalista argentino atestará. O futebol pode ajudar a formar identidades
pessoais, pode cimentar comunidades em grande escala e pode até mesmo
ensejar motivos para violência. Nações e religiões são times de futebol
hipertrofiados.
Humanos têm a notável capacidade de saber e não saber ao mesmo
tempo. Ou, mais corretamente, eles são capazes de saber alguma coisa
quando de fato pensam sobre ela, mas na maior parte do tempo não pensam
sobre ela, por isso não sabem. Se realmente se concentrar, você se dará conta
de que dinheiro é ficção. Mas normalmente você não se concentra. Se lhe
perguntam sobre o futebol, você sabe que é uma invenção humana. Mas no
calor de um jogo, ninguém lhe perguntará sobre isso. Se dedicar tempo e
energia, você poderá descobrir que nações são elaboradas invencionices. Mas
em meio a uma guerra você não tem tempo nem energia. Se você exigir a
verdade suprema, constatará que a história de Adão e Eva é um mito. Mas
quão frequentemente você exige a verdade suprema?
Verdade e poder podem andar juntos só até certo ponto. Cedo ou tarde
vão seguir caminhos separados. Se você quer poder, em algum momento terá
de disseminar mentiras. Se quiser saber a verdade sobre o mundo, em algum
momento terá de renunciar ao poder. Terá de admitir coisas — como as
origens de seu poder, por exemplo — que vão enfurecer aliados, desengajar
seguidores e minar a harmonia social. Não há nada de místico nessa lacuna
entre verdade e poder. Como testemunho disso, apenas encontre um típico
americano protestante, anglo-saxão, branco e levante a questão de raça,
localize um israelense da corrente majoritária e mencione a Ocupação, ou
tente falar com um sujeito comum sobre patriarcado.
Ao longo da história, eruditos depararam com esse dilema
repetidamente. Deveriam servir ao poder ou à verdade? Deveriam manter as
pessoas unidas, garantindo que todas acreditassem na mesma narrativa, ou
deveriam deixar que soubessem a verdade, mesmo ao preço da desunião? Os
intelectualmente mais poderosos — fossem sacerdotes cristãos, mandarins
confucianos ou ideólogos comunistas — puseram a união acima da verdade.
E justamente por isso eram tão poderosos.
Como espécie, os humanos preferem o poder à verdade. Dedicamos
muito mais tempo e esforço tentando controlar o mundo do que tentando
compreendê-lo —, e mesmo quando tentamos compreendê-lo, normalmente
fazemos isso na esperança de que compreender o mundo fará com que nos
seja mais fácil controlá-lo. Por isso, se você sonha com uma sociedade na
qual a verdade reina suprema e os mitos são ignorados, não pode esperar
muito do Homo sapiens. Melhor tentar a sorte com os chipanzés.
ESCAPANDO DA MÁQUINA DE LAVAGEM CEREBRAL
Tudo isso não significa que as fake news não sejam um problema sério,
ou que políticos e sacerdotes tenham liberdade total para mentir
descaradamente. Também seria errado concluir que tudo são apenas fake
news, que toda tentativa de descobrir a verdade está destinada ao fracasso e
que não existe diferença entre jornalismo sério e propaganda. Subjacentes a
todas as fake news existem fatos reais e sofrimentos reais. Na Ucrânia, por
exemplo, soldados russos estão realmente combatendo, milhares já morreram
de verdade e centenas de milhares perderam seus lares. O sofrimento humano
pode ser causado por crença na ficção, mas o sofrimento em si ainda é real.
Portanto, em vez de aceitar fake news como a norma, deveríamos
reconhecer que é um problema muito mais difícil do que supomos, e que
deveríamos nos esforçar ainda mais para distinguir a realidade da ficção. Que
não se espere perfeição. Uma das maiores ficções de todas é negar a
complexidade do mundo e pensar em termos absolutos numa pureza
imaculada contra o mal satânico. Nenhum político diz toda a verdade e nada
além da verdade, mas alguns políticos são bem melhores que outros. Se
pudesse escolher, eu confiaria muito mais em Churchill do que em Stálin,
embora o primeiro-ministro britânico não deixasse de dourar a pílula quando
isso lhe era conveniente. Da mesma forma, nenhum jornal está livre de vieses
e erros, mas alguns fazem um esforço honesto de descobrir a verdade,
enquanto outros são uma máquina de lavagem cerebral. Se eu tivesse vivido
na década de 1930, gostaria de ter tido o bom senso de acreditar mais no New
York Times do que no Pravda e no Der Stürmer.
É responsabilidade de todos nós investir tempo e esforço para expor
nossos vieses e preconceitos, e para verificar nossas fontes de informação.
Como observado em capítulos anteriores, não somos capazes de investigar
tudo sozinhos. Mas exatamente por causa disso precisamos ao menos
investigar com cuidado nossas fontes de informação preferidas — seja um
jornal, um site, uma rede de televisão ou uma pessoa. No capítulo 20 vamos
explorar com muito mais profundidade como evitar a lavagem cerebral e
como distinguir realidade de ficção. Aqui, gostaria de oferecer de improviso
duas regras gerais simples.
Primeira: se você quer uma informação confiável — pague por ela. Se
obtiver suas notícias gratuitamente, talvez o produto seja você. Suponha que
um obscuro bilionário lhe ofereça o seguinte negócio: “Vou lhe pagar trinta
dólares por mês, e em troca você permitirá que todo dia eu lhe faça uma
lavagem cerebral durante uma hora, instalando em seu cérebro quaisquer
vieses políticos ou comerciais que eu queira”. Você aceitaria esse acordo?
Poucas pessoas mentalmente sãs o fariam. Assim, o obscuro milionário
oferece um acordo um pouco diferente: “Você permitirá que eu lhe faça uma
lavagem cerebral diariamente, e em troca não vou lhe cobrar nada pelo
serviço”. Agora o acordo soa tentador para centenas de milhões de pessoas.
Não vá por esse caminho.
A segunda regra geral é que se algum assunto parece ser importante para
você, faça o esforço de ler literatura científica relevante sobre ele. E o que
entendo por literatura científica são artigos avaliados por pares, livros
publicados por editoras acadêmicas bem conhecidas e textos de professores
de instituições respeitáveis. Obviamente, a ciência tem suas limitações e se
envolveu com muitas coisas erradas no passado. Ainda assim, a comunidade
científica tem sido nossa fonte mais confiável de conhecimento, durante
séculos. Se você acha que a comunidade científica está errada quanto a
alguma coisa, isso é bem possível, mas pelo menos conheça as teorias
científicas que está rejeitando, e apresente alguma evidência empírica que
sustente sua alegação.
Os cientistas, por sua vez, precisam estar muito mais envolvidos nos
debates públicos atuais. Não deveriam ter medo de se fazer ouvir quando o
debate se estender a seu campo de especialidade, seja a medicina ou a
história. Silêncio não é neutralidade, é apoio ao status quo. É claro que é
extremamente importante continuar a fazer pesquisa científica e publicar os
resultados em revistas científicas que só uns poucos especialistas leem. Mas é
igualmente importante comunicar as últimas teorias científicas ao público em
geral por meio de livros de divulgação científica e até mesmo mediante o uso
inteligente da arte e da ficção.
Isso significa que cientistas deveriam começar a escrever livros de
ficção científica? Não seria má ideia. A arte desempenha um papel
fundamental na maneira pela qual as pessoas concebem o mundo, e no século
XXI a ficção científica é sem dúvida o gênero mais importante de todos, pois
ela expressa como a maioria das pessoas compreende coisas como a IA, a
bioengenharia e a mudança climática. De fato precisamos de boa ciência, mas
de uma perspectiva política, um bom filme de ficção científica vale muito
mais do que um artigo na Science ou na Nature.
18. Ficção científica
O futuro não é o que você vê nos filmes
Os humanos controlam o mundo porque são capazes de cooperar melhor
do que qualquer outro animal, e são capazes de cooperar tão bem porque
acreditam em ficções. Poetas, pintores e dramaturgos são, portanto, pelo
menos tão importantes quanto soldados e engenheiros. As pessoas vão à
guerra e constroem catedrais porque acreditam em Deus, e acreditam em
Deus porque leram poemas sobre Deus, porque viram imagens que
representam Deus e porque ficaram hipnotizadas ao assistir a peças teatrais
sobre Deus. Da mesma forma, nossa crença na moderna mitologia do
capitalismo é sustentada pelas criações artísticas de Hollywood e pela
indústria pop. Acreditamos que comprar mais coisas vai nos fazer felizes,
porque vemos o paraíso capitalista com nossos próprios olhos, na televisão.
No início do século XXI, talvez o gênero artístico mais importante seja a
ficção científica. Muito pouca gente leu os artigos mais recentes nos campos
do aprendizado de máquina ou da engenharia genética. Em vez disso, filmes
como Matrix e Ela e séries de televisão como Westworld e Black Mirror
expressam como as pessoas entendem os mais importantes desenvolvimentos
tecnológicos, sociais e econômicos de nossos tempos. Isso significa também
que a ficção precisa ser muito mais responsável quanto ao modo como
descreve realidades científicas, do contrário poderá incutir nas pessoas ideias
erradas, ou focar sua atenção nos problemas errados.
Como observado em um capítulo anterior, talvez o maior pecado da
ficção científica atual seja a tendência a confundir inteligência com
consciência. Como resultado, está preocupada demais com uma possível
guerra entre robôs e humanos, quando na realidade devemos temer um
conflito entre uma pequena elite de super-humanos com poderes ampliados
por algoritmos e uma vasta subclasse de Homo sapiens sem nenhum poder.
Quando se pensa no futuro da IA, Karl Marx ainda é um guia melhor que
Steven Spielberg.
De fato, muitos filmes sobre inteligência artificial são tão divorciados da
realidade científica que se pode suspeitar serem só alegorias de preocupações
completamente diferentes. Assim, o filme Ex Machina: instinto artificial
parece ser sobre um especialista em IA que se apaixona por uma robô e acaba
sendo enganado e manipulado por ela. Mas na verdade não é um filme sobre
o medo que humanos têm de robôs inteligentes. É um filme sobre o medo que
o homem tem de uma mulher inteligente, em especial o medo de que
liberação feminina possa levar à dominação dos homens. Sempre que você
assiste a um filme sobre IA no qual a IA é mulher e o cientista é homem,
provavelmente é um filme sobre o feminismo, e não sobre cibernética. Pois
por que cargas d’água uma IA teria uma identidade sexual ou de gênero? O
sexo é uma característica de seres orgânicos multicelulares. O que poderia
significar para um ser cibernético não orgânico?
VIVER NUMA CAIXA
Um assunto que a ficção científica explorou com muito mais
discernimento diz respeito ao perigo de a tecnologia ser usada para manipular
e controlar seres humanos. O filme Matrix descreve um mundo no qual quase
todos os humanos estão aprisionados num ciberespaço, e tudo o que eles
vivenciam é configurado por um algoritmo mestre. O show de Truman
concentra-se num único indivíduo que é o astro involuntário de um reality
show na televisão. Sem que ele saiba, todos os seus amigos e conhecidos —
inclusive sua mãe, sua mulher e seu melhor amigo — são atores; tudo o que
acontece com ele segue um roteiro bem trabalhado; e tudo o que ele diz e faz
é gravado por câmeras ocultas e avidamente acompanhado por milhões de
fãs.
No entanto, ambos os filmes — não obstante seu brilhantismo — no fim
se distanciam de tudo o que implicam seus cenários. Presumem que os
humanos presos na armadilha da matrix têm um “eu” autêntico, que
permanece intocado por todas as manipulações tecnológicas, e que além da
matrix está à espera uma realidade autêntica, que os heróis podem acessar se
se esforçarem. A matrix é só uma barreira artificial que separa seu autêntico
“eu” interior do autêntico mundo exterior. Após muitas tentativas e
atribulações, os dois heróis — Neo em Matrix e Truman em O show de
Truman — conseguem transcender e escapar da rede de manipulações,
descobrir seu “eu” autêntico e alcançar a autêntica terra prometida.
Muito curiosamente, essa autêntica terra prometida é idêntica em todos
os aspectos importantes à inventada matrix. Quando Truman escapa do
estúdio de televisão, ele busca se reencontrar com a namorada da época do
ensino médio, que o diretor do programa tinha banido do elenco. Mas, se
Truman realizasse sua fantasia romântica, sua vida seria exatamente como o
perfeito sonho de Hollywood que O Show de Truman vendeu a milhões de
espectadores em todo o mundo — com direito a férias nas ilhas Fiji. O filme
não nos dá uma dica sequer sobre que tipo de vida alternativa Truman
poderia encontrar no mundo real.
Da mesma forma, quando Neo sai da matrix engolindo a famosa pílula
vermelha, ele descobre que o mundo de fora não é diferente do mundo de
dentro. Tanto fora como dentro há conflitos violentos e pessoas movidas por
medo, luxúria, amor e inveja. O filme deveria terminar quando dizem a Neo
que a realidade que ele acessou é só uma matrix maior, e que se ele quiser
escapar para o “verdadeiro mundo real”, terá de escolher novamente entre a
pílula azul e a vermelha.
A atual revolução tecnológica e científica implica não que indivíduos
autênticos e realidades autênticas podem ser manipulados por algoritmos e
câmeras de televisão, e sim que a autenticidade é um mito. As pessoas têm
medo de ficar presas numa armadilha dentro de uma caixa, mas não se dão
conta de que já estão presas dentro de uma caixa — seu cérebro — que está
trancada dentro de uma caixa maior — a sociedade humana com suas
incontáveis ficções. Quando você escapa da matrix, a única coisa que
descobre é uma matrix maior. Quando camponeses e trabalhadores se
revoltaram contra o tsar em 1917, eles acabaram com Stálin; e, quando você
começa a explorar as múltiplas maneiras com que o mundo o manipula, no
fim você constata que sua identidade mais íntima é uma ilusão completa
criada por redes neurais.
As pessoas têm medo de que, ao estarem presas dentro de uma caixa,
perderão todas as maravilhas do mundo. Enquanto Neo está preso na matrix,
e Truman está preso no estúdio de televisão, eles nunca visitarão as ilhas Fiji,
ou Paris, ou Machu Picchu. Mas, na verdade, tudo o que você experimentar
na vida está dentro de seu próprio corpo e sua própria mente. Escapar da
matrix ou ir para Fiji não fará nenhuma diferença. Não é que em algum lugar
de sua mente exista um baú de ferro com uma grande placa advertindo em
vermelho “Abra apenas em Fiji!”, e quando você finalmente viajar para o
Pacífico Sul vai poder abrir o baú e vivenciar todos as emoções e sensações
especiais que só se pode ter em Fiji. E se nunca visitar Fiji em sua vida, então
você perdeu para sempre essas sensações especiais. Não. O que quer que
você seja capaz de sentir em Fiji, você é capaz de sentir em qualquer lugar do
mundo; até mesmo dentro da matrix.
Talvez estejamos vivendo dentro de uma gigantesca simulação de
computador, no estilo de Matrix. Isso estaria em contradição com todas as
nossas narrativas nacionais, religiosas e ideológicas. Mas nossas experiências
mentais ainda seriam reais. Se se descobrir que a história humana é uma
elaborada simulação conduzida num supercomputador por ratos cientistas do
planeta Zircon, isso seria bastante embaraçoso para Karl Marx e para o
Estado Islâmico. Mas esses ratos cientistas ainda teriam de responder pelo
genocídio armênio e por Auschwitz. Como isso teria passado pelo comitê de
ética da Universidade de Zircon? Mesmo que as câmaras de gás tenham sido
apenas sinais elétricos em chips de silício, as experiências da dor, do medo e
do desespero não teriam sido nem um pouco menos excruciantes.
Dor é dor, medo é medo, e amor é amor — mesmo na matrix. Não
importa se o medo que você sente seja inspirado por um conjunto de átomos
ou por sinais elétricos manipulados por um computador. O medo continua a
ser real. Assim, se você quiser explorar a realidade de sua mente, poderá
fazer isso dentro ou fora da matrix.
A maioria dos filmes de ficção científica na verdade conta uma narrativa
muito antiga: a vitória da mente sobre a matéria. Trinta mil anos atrás, a
narrativa era: “Mente imagina uma faca de pedra — mão cria a faca —
humano mata mamute”. Mas a verdade é que os humanos ganharam o
controle do mundo não tanto por terem inventado facas e matado mamutes
quanto por manipularem mentes humanas. A mente não é o sujeito que
modela a seu bel-prazer ações históricas e realidades biológicas — a mente é
um objeto que está sendo modelado pela história e pela biologia. Mesmo
nossos ideais mais profundos — liberdade, amor, criatividade — são como
uma faca de pedra que alguém modelou para matar algum mamute. Segundo
as melhores teorias científicas e as mais atualizadas ferramentas tecnológicas,
a mente nunca está livre de manipulação. Não existe um “eu” autêntico
esperando ser libertado da carapaça da manipulação.
Você tem alguma ideia de quantos filmes, romances e poemas consumiu
ao longo dos anos, e como esses artefatos esculpiram e aguçaram sua noção
de o que é o amor? Comédias românticas estão para o amor assim como
filmes pornográficos estão para o sexo e Rambo está para a guerra. E, se você
pensa que pode apertar algum botão “delete” e erradicar todo traço de
Hollywood de seu subconsciente e de seu sistema límbico, está iludindo a si
mesmo.
Gostamos da ideia de modelar facas de pedra, mas não gostamos da
ideia de sermos, nós mesmos, facas de pedra. Assim, a variante da matrix
para a antiga história do mamute é algo assim: “Mente imagina um robô —
mão cria um robô — robô mata terroristas mas também tenta controlar a
mente — mente mata robô”. Mas essa narrativa é falsa. O problema não é
que a mente não seja capaz de matar o robô. O problema, para começo de
conversa, é que a mente que imaginou o robô já era o produto de
manipulações muito anteriores. Por isso matar o robô não vai nos libertar.
A DISNEY PERDE A FÉ NO LIVRE-ARBÍTRIO
Em 2015, os estúdios Pixar e Walt Disney lançaram uma animação
sobre a condição humana muito realista e perturbadora e que rapidamente
tornou-se um grande sucesso entre crianças e adultos. Divertida mente conta
a história de uma menina de onze anos, Riley Anderson, que muda com seus
pais de Minnesota para San Francisco. Com saudade dos amigos e de sua
cidade natal, ela tem dificuldade para se adaptar à nova vida, e tenta fugir de
volta para Minnesota. Porém, sem que Riley saiba, um drama muito maior
está acontecendo. Riley não é uma estrela involuntária de um reality show, e
não está presa na matrix. A própria Riley é a matrix, e há algo preso dentro
dela.
Disney construiu seu império recontando um mito repetidas vezes. Em
vários de seus filmes, os heróis enfrentam dificuldades e perigos, mas
triunfam no final, encontrando seu verdadeiro eu e seguindo sua livre
escolha. Divertida mente desmonta esse mito por completo. Adota a mais
recente visão neurobiológica dos humanos e leva os espectadores numa
jornada para dentro do cérebro de Riley, para revelar que ela não tem um eu
autêntico e que nunca fez quaisquer escolhas livres. Riley é na verdade um
enorme robô manejado por um conjunto de mecanismos bioquímicos em
conflito, os quais o filme personifica na forma de simpáticos personagens de
animação: a amarela e alegre Alegria, a azul e morosa Tristeza, o vermelho e
irascível Raiva, e assim por diante. Manipulando uma série de botões e
alavancas no Quartel-General, enquanto observam cada movimento de Riley
numa enorme tela de televisão, esses personagens controlam todos os
humores, decisões e ações de Riley.
O fracasso de Riley em se adaptar a sua nova vida em San Francisco
resulta de uma confusão no Quartel-General que ameaça pôr o cérebro de
Riley totalmente fora de equilíbrio. Para corrigir as coisas, Alegria e Tristeza
partem numa jornada épica pelo cérebro de Riley, viajando no trem do
pensamento, explorando a prisão do subconsciente e visitando o estúdio
interno onde uma equipe de neurônios artistas está ocupada na fabricação de
sonhos. Enquanto percorremos esses mecanismos bioquímicos
personalizados nas profundezas do cérebro de Riley, nunca encontramos uma
alma, um autêntico eu ou um livre-arbítrio. De fato, o momento de revelação
no qual toda a trama se articula acontece não quando Riley descobre seu
único e autêntico eu, e sim quando fica evidente que Riley não pode ser
identificada por um núcleo único, e que seu bem-estar depende da interação
de muitos mecanismos diferentes.
No começo, os espectadores são levados a identificar Riley com a
personagem líder — a amarela e contente Alegria. Mas depois constata-se
que esse foi o erro crucial que ameaçou arruinar a vida de Riley. Pensando
que ela é, sozinha, a essência autêntica de Riley, Alegria intimida todos os
outros personagens interiores, rompendo o delicado equilíbrio do cérebro. A
catarse acontece quando Alegria percebe seu erro e — junto com os
espectadores — constata que Riley não é Alegria, ou Tristeza ou qualquer um
dos outros personagens. Riley é uma narrativa complexa produzida pelos
conflitos e pela colaboração de todos os personagens bioquímicos juntos.
O mais espantoso é não só que a Disney ousou lançar no mercado um
filme com uma mensagem tão radical — mas que ele tenha se tornado um
sucesso no mundo todo. Talvez tenha sido assim porque Divertida mente é
uma comédia com final feliz, e é bem capaz que a maioria dos espectadores
não tenha captado seu significado neurológico e suas sinistras implicações.
Não se pode dizer o mesmo do mais profético livro de ficção científica
do século XX. Não é possível deixar de perceber sua natureza sinistra. Foi
escrito quase um século atrás, mas torna-se mais relevante a cada ano que
passa. Aldous Huxley escreveu Admirável Mundo Novo em 1931, com o
comunismo e o fascismo entrincheirados na Rússia e na Itália, o nazismo em
ascensão na Alemanha, um Japão militarista dando início a sua guerra de
conquista na China e o mundo inteiro tomado pela Grande Depressão. Mas
Huxley conseguiu enxergar através de todas essas nuvens escuras e prever
uma sociedade sem guerras, fome e epidemias, usufruindo de paz,
prosperidade e saúde ininterruptas. É um mundo consumista, que deixa reinar
livremente o sexo, as drogas e o rock ‘n’ roll, e cujo valor supremo é a
felicidade. O pressuposto que subjaz no livro é que os humanos são
algoritmos bioquímicos, que a ciência é capaz de hackear o algoritmo
humano e que a tecnologia pode ser usada para manipulá-lo.
Nesse admirável mundo novo, o Governo Mundial utiliza biotecnologia
avançada e engenharia social para garantir que todos estejam sempre
contentes e que ninguém tenha nenhum motivo para se rebelar. É como se
Alegria, Tristeza e outros personagens no cérebro de Riley tivessem se
tornado agentes leais ao governo. Não há, portanto, necessidade de uma
polícia secreta, ou de campos de concentração, ou de um ministério do amor,
à la 1984, de Orwell. Na verdade, o genial em Huxley consiste em
demonstrar que é possível controlar pessoas com muito mais segurança
mediante amor e prazer do que por medo e violência.
Quando se lê 1984 fica claro que Orwell está descrevendo um assustador
mundo de pesadelo, e a única questão deixada em aberto é “Como evitamos
chegar a um estado tão terrível?”. Ler Admirável Mundo Novo é uma
experiência muito mais desconcertante e desafiadora, porque é difícil
identificar exatamente o que o faz distópico. O mundo é pacífico e próspero,
e todos estão satisfeitos o tempo todo. O que poderia estar errado?
Huxley faz essa pergunta diretamente, no momento de clímax do
romance: o diálogo entre Mustafá Mond, o Controlador do Mundo para a
Europa ocidental, e John, o Selvagem, que viveu toda sua vida numa reserva
nativa no Novo México, e que é o único homem em Londres que nunca ouviu
falar em Shakespeare ou Deus.
Quando John, o Selvagem, tenta incitar o povo de Londres a se rebelar
contra o sistema que os controla, eles reagem a seu chamado com apatia total,
mas a polícia o prende e o traz à presença de Mustafá Mond. O Controlador
do Mundo tem uma agradável conversa com John, explicando que se ele
insiste em ser antissocial deveria retirar-se para algum lugar isolado e viver
como um eremita. John então questiona as ideias que sustentam a ordem
global, e acusa o Governo Mundial de que, na busca da felicidade, ele
eliminou não só a verdade e a beleza, mas tudo o que é nobre e heroico na
vida.
“Meu jovem querido amigo”, diz Mustafá Mond, “a civilização não precisa de nobreza ou
heroísmo. Essas coisas são sintomas de ineficiência política. Numa sociedade bem organizada
como a nossa, ninguém tem qualquer oportunidade para ser nobre ou herói. As condições teriam
de ser totalmente instáveis para que surgisse uma situação como essa. Onde há guerras, onde há
divisão de lealdades, onde há tentações às quais resistir, objetos de amor pelos quais lutar ou os
quais defender — lá, obviamente, nobreza e heroísmo fazem algum sentido. Mas aqui não há
guerras hoje. Tomam-se grandes cuidados para impedir que você ame alguém demais. Não
existe essa coisa de lealdade dividida; você está tão condicionado que não pode evitar fazer o
que deve fazer. E o que você deve fazer é tão prazeroso, tantos são os impulsos naturais aos
quais se permite livre manifestação, que na verdade não há quaisquer tentações às quais resistir.
E se alguma vez, por algum infeliz acaso, algo desagradável de algum modo acontecesse, bem,
sempre temos soma [a droga] para você tirar umas férias dos fatos. E sempre tem soma para
aplacar sua raiva, reconciliá-lo com seus inimigos, fazer com que seja paciente e estoico. No
passado você só poderia realizar essas coisas fazendo um grande esforço e após anos de rigoroso
treinamento moral. Agora, você engole dois ou três tabletes de meia grama, e pronto. Agora
qualquer um pode ser virtuoso. Você pode levar pelo menos metade de sua moralidade num
frasco. Cristianismo sem lágrimas — é isso que soma é.”
“Mas as lágrimas são necessárias. Não se lembra do que disse Otelo? ‘Se após cada
tempestade vêm tais calmarias, que soprem os ventos até terem despertado a morte.’ Há uma
história que um desses velhos índios costumava nos contar, sobre a Garota de Mátsaki. O jovem
que quisesse casar com ela teria de fazer a capina matinal em seu jardim. Parecia fácil; mas havia
moscas e mosquitos, mágicos. A maioria dos jovens simplesmente não conseguia aguentar as
mordidas e picadas. Mas aquele que conseguiu — conseguiu a garota.”
“Encantador! Mas em países civilizados”, disse o Controlador, “você pode ter garotas sem
capinar por elas; e não há quaisquer moscas ou mosquitos para picar você. Livramo-nos de todos
eles séculos atrás.”
O Selvagem assentiu, franzindo a testa. “Vocês se livraram deles. Sim, isso é típico de vocês.
Livrando-se de tudo o que é desagradável em vez de aprender a suportá-lo. Saber se é mais nobre
na mente suportar as pedradas e flechas da fortuna atroz ou tomar armas contra as vagas de
aflições e, ao afrontá-las, dar-lhes fim… Mas vocês não fazem nenhum dos dois. Nem sofrer
nem se opor. Vocês apenas aboliram os estilingues e as flechas. É fácil demais… O que vocês
precisam”, continuou o Selvagem, “é de algo com lágrimas, para variar… Viver perigosamente
não tem sua graça?”
“Muita”, replicou o Controlador. “Homens e mulheres devem ter suas suprarrenais
estimuladas de vez em quando… É uma das condições para uma saúde perfeita. É por isso que
fizemos com que os tratamentos S.P.V. sejam compulsórios.”
“S.P.V.?”
“‘Substituto da Paixão Violenta.’ Uma vez por mês inundamos todo o sistema de adrenalina.
É o exato equivalente fisiológico do medo e da raiva. Todos os efeitos tônicos de assassinar
Desdêmona e ser assassinada por Otelo sem nenhuma das inconveniências.”
“Mas eu gosto de inconveniências.”
“Nós não”, disse o Controlador. “Preferimos fazer as coisas confortavelmente.”
“Mas eu não quero conforto. Eu quero Deus, quero poesia, quero perigo real, quero liberdade.
Quero bondade. Quero pecado.”
“Na verdade”, disse o Controlador, “você está reivindicando o direito de ser infeliz.”
“Tudo bem, então”, disse o Selvagem, desafiador. “Estou reivindicando o direito de ser
infeliz.”
“Sem falar no direito de ficar velho, feio e impotente; o direito de ter sífilis e câncer; o direito
de ter muito pouco o que comer; o direito de ser horrível; o direito de viver em constante
apreensão quanto ao que vai acontecer amanhã; o direito de pegar tifo; o direito de ser torturado
por dores indizíveis de todo tipo.”
Houve um longo silêncio.
“Reivindico tudo isso”, disse o Selvagem afinal.
Mustafá Mond deu de ombros. “Disponha”, disse ele.
John, o Selvagem, retira-se para um deserto desabitado e vive lá como
um eremita. Os anos que passou na reserva indígena recebendo lavagem
cerebral sobre Shakespeare e religião o condicionaram a rejeitar todas as
bênçãos da modernidade. Mas as palavras de um sujeito tão incomum e
excitante espalham-se rapidamente, e as pessoas acorrem para vê-lo e
registram tudo o que faz, e logo ele se torna uma celebridade. Enjoado até a
alma com essa atenção indesejada, o Selvagem foge da matrix civilizada, não
engolindo uma pílula vermelha, mas se enforcando.
Diferentemente dos criadores de Matrix e de O show de Truman, Huxley
duvidava da possibilidade de fuga, porque questionava se haveria alguém
disposto a fugir. Uma vez que seu cérebro e seu eu são parte da matrix, para
fugir dela você tem de fugir de seu eu. No entanto, é uma possibilidade que
vale a pena explorar. Escapar da definição estreita do eu pode bem se tornar
uma habilidade para sobrevivência necessária no século XXI.